O Problema do Mal na História das Ideias 1/2

Por Caramuru A. Francisco 


I - A filosofia como uma atividade propriamente humana e o problema do mal

O homem foi feito por Deus um ser pensante, dotado de entendimento e de consciência de si e do que está à sua volta. Dizem as Escrituras que, após ter criado o homem, Deus trouxe à sua presença todos os demais seres criados para que o homem os nomeasse (Gn.2:19), tendo o homem não só sido exitoso nesta sua tarefa, como também percebido que estava só, percepção que fez sem que Deus lhe tivesse falado coisa alguma a respeito, numa clara demonstração de que o homem tem capacidade para entender as coisas, assim foi feito pelo seu Criador.

Ora, por causa desta capacidade de entendimento, o homem cedo desenvolveu uma série de reflexões a respeito do mundo, da existência, de Deus, das coisas criadas e tudo o mais que o cerca, reflexões estas, pensamentos estes que deram origem ao que se denominou, posteriormente, de "filosofia", palavra que teria sido criada pelo filósofo grego Pitágoras de Samos, que viveu por volta do século VI a.C.
                       
A palavra "filosofia"  significa "amizade ao saber", ou seja, a busca do saber. O filósofo é alguém que é amigo do saber, alguém que busca a razão de ser das coisas, que procura entender os fundamentos, os princípios que estão por detrás de todo o conhecimento do real e do concreto. Enquanto o cientista é alguém voltado para explicar o que está à sua volta, como as coisas ocorrem, porque ocorrem e quando ocorrerão novamente, o filósofo está buscando entender como é possível conhecer, o que é o conhecimento e sob que alicerces ele está fundamentado.

Não é de admirar, portanto, que o primeiro filósofo assim reconhecido tenha sido o grego Tales de Mileto (640-c. 548 a.C.), exatamente porque, ao observar a natureza, que já estudava há algum tempo (Tales foi um grande matemático, físico e geômetra), voltou-se para esta mesma natureza tentando descobrir qual era o princípio de todas as coisas, se havia algo que pudesse dar unidade a tudo que existia, chegando à conclusão de que havia este princípio e que este princípio seria a água. Foi, exatamente, por tentar ter uma visão global, totalizante de toda a existência que Tales foi considerado como sendo o primeiro filósofo. No entanto, se Tales é considerado o primeiro filósofo, não podemos deixar de considerar que a atividade filosófica sempre existiu na humanidade, pois é fruto da sua capacidade de entendimento, presentes desde a criação, e que Tales, apenas, a desenvolveu separadamente do pensamento religioso, usando a razão como único e exclusivo critério de desenvolvimento dos seus argumentos.

Com efeito, bem antes de Tales, notadamente nas civilizações mais antigas, que são as orientais, a reflexão em torno da existência, do mundo e de Deus era algo que já estava presente, mas, e aí reside a grande diferença entre a filosofia ocidental e a oriental até os dias de hoje, nas reflexões e pensamentos até o surgimento de Tales, não havia a utilização da razão como único critério de avaliação, mas, bem ao contrário, misturado ao exercício da razão estavam os mitos e as crenças religiosas dos pensadores, algo que persiste até hoje na filosofia do Oriente.

Assim, embora a filosofia tenha ganhado, por assim dizer, autonomia e caminho próprio no Ocidente, a partir de Tales de Mileto, o fato é que já encontramos uma produção filosófica bem anterior, ainda que misturada com o pensamento religioso. Neste pensamento filosófico ainda relacionado e misturado com a religião, próprio do Oriente até os presentes dias, é natural que as discussões filosóficas tivessem, sempre, como foco, como centro de interesse, o problema da divindade e do relacionamento entre a divindade e o homem. Atividade das mais básicas e elementares do ser humano, a ponto de ter sido, inclusive, considerada como a própria razão de ser da vida em sociedade, a religião é encontrada nos mais simples grupos sociais humanos e traz, sempre, uma explicação totalizante do mundo, algo que é essencial para um ser consciente e que tem entendimento como é o homem.

Ao trazer uma explicação para o mundo que cerca o homem, a religião, de forma automática, instiga o homem a refletir sobre o significado da sua existência, sobre a razão de ser do mundo, sobre a sua posição na ordem cósmica, sobre a existência de Deus e da natureza do relacionamento entre Deus e o homem, questões que, além de religiosas, são, conforme já vimos, filosóficas. Deste modo, já mesmo antes de Tales de Mileto, encontramos reflexões, digressões a respeito do papel do homem no universo e do seu relacionamento com a divindade.

Nesta discussão a respeito do homem, de Deus e do relacionamento entre eles, exsurge, de pronto, uma intrigante questão, que tem atormentado as mentes humanas ao longo da história, questão esta que por ser um grande obstáculo ao pensamento, um grande desafio aos pensadores, é considerada sempre um " problema"  (palavra grega que significa " aquilo que está diante dos olhos", " aquilo que impede alguém de ver o que está além"), a saber: o problema do mal. Com efeito, ao raciocinar sobre o homem e a divindade, bem como sobre o relacionamento entre ambos, encontra o homem a realidade da presença do mal no mundo.

Mesmo nas religiões pagãs, onde, não raro, os deuses eram projeções dos homens e, portanto, dotados dos mesmos vícios e paixões que caracterizam os homens, não passou despercebida a ideia de que a maldade deveria ter uma origem e que deveria ser objeto de explicação, pois não é algo natural e que deva ser considerado como algo que deva ser aceito por todos. Como explicar a existência do mal, assim, foi algo que sempre intrigou o ser humano e que, portanto, sempre esteve na pauta das reflexões e dos pensamentos dos filosófos através da história.

Com o triunfo das religiões monoteístas, então, a questão aumentou ainda mais de importância e o desafio se intensificou, pois, no monoteísmo, temos um único Deus, que, necessariamente, será bom, é imutável e tem um caráter que não pode se alterar. Então, como considerar que, diante de um Deus com tais qualidades, haja o mal e seja ele uma realidade presente e evidente no mundo em que vivemos ?

Como afirma R.N. Champlin, "…A maldade existe e é maligna. Deus também e é todo-bondoso e todo-poderoso. Como é que podemos reconciliar estes fatos ? Isto é o problema do mal…" (Problema do mal. In: Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, v.5, p.407).
Sem pretendermos ser exaustivos, nem mesmo introdutórios, veremos, ao longo da história, como tem se enfrentado esta questão, seja nos domínios da filosofia, seja nos domínios da teologia, entendida esta, aqui, como a reflexão racional com base em idéias religiosas indiscutidas.

II -  As correntes de pensamento no tratamento do problema do mal: o dualismo

Para resolver o problema do mal, ao longo dos séculos, os pensadores têm adotado algumas linhas de pensamento, que merecem ser aqui observadas. Em primeiro lugar, há aqueles que discutem a questão do mal a partir de uma concepção dualista do mundo, ou seja, enxergam que o mundo tem dois princípios, duas forças de igual magnitude, de igual intensidade, mas que são contrárias: o bem e o mal.

É compreensível este ponto-de-vista do pensamento humano. Ao tomar consciência de que, à sua volta, existem tanto o bem quanto o mal, é natural que o homem chegue à conclusão de que o mundo é o resultado de um embate entre dois princípios contrários, entre duas forças antagônicas: o bem e o mal. Assim, pensa o homem, quando analisamos o princípio de todas as coisas, de toda a ordem universal, vamos encontrar estas duas forças contrárias que estão à nossa volta, que habitam a nossa realidade, duas forças que, necessariamente, são antagônicas e que, portanto, lutam entre si desde o início dos tempos e que são as responsáveis pela história universal. Deste modo, o mal seria algo realmente existente e, mais do que isto, seria uma das forças criadoras do mundo.

Esta visão, este modo de pensar foi denominado "dualismo" , expressão cuja invenção é atribuída ao historiador Thomas Hyde, quando escreveu sobre o Império Persa em 1700. A religião dos antigos persas, o zoroastrismo ou masdeísmo, é um dos exemplos mais claros desta concepção do mal. Com efeito, esta religião estava baseada na idéia de que existem duas forças antagônicas no universo, a saber: o princípio do bem (ou da luz) e o princípio do mal (ou das trevas), representados, respectivamente, por Ahura Mazda ou Ormuzd(o deus do bem) e Ahriman (o deus do mal).

Segundo os zoroastristas, o mundo tinha sido o resultado de um encontro casual entre estas duas forças e, desde então, elas estariam em constante luta pelo domínio do universo, em especial do homem, ainda que, no futuro, o bem triunfaria sobre o mal, já que a luz age por livre-arbítrio e com um claro desígnio, enquanto que o mal, por acaso e em completa ausência de propósito ou finalidade.

Ao lado dos zoroastristas (que, aliás, exerceram influência sobre o pensamento judaico, uma vez que Israel esteve sob domínio persa durante alguns séculos), também dão explicações dualistas para o problema do mal os taoístas e os neoconfucionistas, pensadores religiosos oriundos da China. O taoísmo, religião fundada pelo chinês Lao-Tsé, é uma das chamadas " três religiões" ou "San Chiao", um conglomerado de idéias e crenças que é, sem dúvida alguma, a principal fonte da cultura chinesa e que resistiu, inclusive, à tentativa de modificação cultural vivida durante o regime comunista de Mao Tsé-Tung.

O taoísmo foi fundado cerca de 500 a.C. e parte da idéia de que o universo é o resultado do equilíbrio de duas forças, que devem sempre estar em harmonia, o "yin" e o "yang", respectivamente o pólo negativo e o pólo positivo da energia vital e espiritual.

Bem e mal, portanto, seriam pólos extremos da mesma energia e não seriam diferentes em essência, devendo ser sempre buscado o equilíbrio entre eles, pois aí residiria o caminho (em chinês, "tao") para que se pudesse alcançar a felicidade. Para os taoístas, o princípio de todas as coisas, o Ser Absoluto, possui em si mesmo estes dois princípios, de forma que bem e mal são eternos e devem perdurar, desde que haja o equilíbrio entre eles.

Estas concepções dualistas antigas têm encontrado ressonância nos nossos dias, em especial dentro dos movimentos que têm sido reunidos sob a genérica denominação de "Nova Era", já que têm em comum a preocupação de fazer crer que é chegado um novo tempo e que se deve superar o pensamento judaico-cristão que tem dominado a cultura humana nos últimos dois milênios.

Cada vez mais temos visto livros, filmes e demais produções científicas, literárias e artísticas a defender a tese de que bem e mal são forças de igual natureza, que devem apenas ser harmonizadas e reunidas, sem oposição, para que se alcance a paz e a felicidade. Expressões corriqueiras como "do bem" e do "do mal" têm sido utilizadas pelos nossos jovens, adolescentes e até crianças em todo o mundo, havendo, cada vez mais, uma crença generalizada de que o bem e o mal são princípios que não se opõem, apenas pontos-de-vista diferentes de uma mesma realidade cósmica.

Até mesmo entre os pensadores ligados a filosofias e crenças que repelem o dualismo, como o próprio cristianismo, estão a surgir, com cada vez maior intensidade, doutrinas e conclusões que, ao serem analisadas com profundidade, acabam levando o seu seguidor a uma concepção dualista do mundo. Assim, por exemplo, doutrinas como a da chamada batalha espiritual, que tende a transformar a vida do cristão no resultado de uma luta entre as forças do bem (os anjos bons) e as forças do mal (os anjos caídos), adequando, assim, o pensamento dualista a expressões e figuras bíblicas.

Entre os hebreus, percebemos que, até o domínio persa, o dualismo nunca foi um pensamento que tivesse guarida. Quando vemos o livro de Jó, por exemplo, livro este que é considerado como sendo o mais antigo livro da Bíblia, ali notamos que o mal, personificado na figura de Satanás, não é algo que tenha o mesmo poder ou força do bem, representado por Deus. Bem ao contrário, Deus é apresentado como um verdadeiro soberano, que está no controle de toda a situação e que permite que o diabo ataque o patriarca Jó e, mesmo assim, dentro de limites explícitos, que jamais são ultrapassados.  Dentro deste quadro, portanto, na teologia hebraica, embora o mal exista e não se pretenda negar a sua existência, nunca ele é apresentado como algo que existisse desde o início do universo e que é completamente subalterno ao bem, este, sim, eterno e sempre existente.

Verdade é que, após o domínio persa, que se dará, precisamente, no auge do desenvolvimento do zoroastrismo (Ciro é tido, na história, como um dos grandes incentivadores desta religião), os mestres religiosos judeus sofrerão uma inevitável influência do pensamento dualista, o que gerará as concepções rabínicas do " Ietzer-Tov" e " Ietzer-Ha-Ra", ou seja, respectivamente, "inclinação para o bem"  e "inclinação para o mal", até hoje presentes na literatura judaica.

Afirma o enciclopedista judeu Nathan Ausubel que, apesar desta nítida influência do zoroastrismo, o judaísmo não se tornou dualista, pois, "…havia uma diferença fundamental entre o dualismo encontrado na religião persa e o que se desenvolveu posteriormente de maneira independente, entre os judeus. Na religião de Zoroastro, havia duas deidades, simbólicas do bem e do mal(…), [mas] os ensinamentos rabínicos dotavam esse conflito de um caráter naturalístico - de fato, quase psicológico - declarando que o 'Bem' e o ' Mal' não eram, ao contrário do que pretendiam os persas, forças sobrenaturais que operavam fora dos seres humanos, mas inclinações naturais dentro dos seres humanos, lutando sem cessar pela supremacia da mente e da alma, dentro do ' reino do coração' (…) não eram poderes absolutos e sim condicionais, sujeitos a controles morais da mente e às decisões da vontade". (Ietzer Tov e Ietzer Ha-ra. In: Judaica, v.6, p.364). Vemos, assim, que, mesmo diante da influência do zoroastrismo, os judeus nunca deram ao mal um "status" de algo que tivesse uma existência independente ou que fosse um contraponto ao bem, sempre mantendo o pensamento que se encontra desde o livro de Jó, ou seja, de que o mal existe, mas como algo subalterno, algo submisso ao bem.

Se, entre os judeus, o dualismo não deixou de pôr as suas marcas, diferente não foi o que se viu entre os cristãos. Já desde o primeiro século do cristianismo, levantara-se ensinadores e pensadores a defender uma postura dualista no tratamento do problema do mal, corrente de pensamento, entretanto, que foi vigorosamente combatida pelos chamados " pais da Igreja", como são chamadas as lideranças e mestres cristãos dos dois primeiros séculos de nossa era e que se seguiram imediatamente depois dos apóstolos.

Coube aos gnósticos a defesa de um pensamento dualista dentro do cristianismo então nascente. As escolas gnósticas de Marcião (?-c.165), Valentino (135-165) e de seu discípulo Basílides (séc. II ) defenderam a tese de que a existência do mal somente pode ser explicada pelo fato de que, ao lado do Deus bondoso do Novo Testamento, haveria um princípio do mal, dotado de justiça  que teria sido o Criador deste mundo, que seria o Deus do Antigo Testamento. Assim, o mal teria como explicação a existência destes dois deuses, sendo certo que o Deus do novo Testamento, que seria, de fato, o verdadeiro Deus, superior ao outro, venceria este deus iracundo e justo. Contra este posicionamento gnóstico, levantar-se-ão, como já dissemos, os chamados " pais da Igreja", que, por causa disto, não puderam deixar de enfrentar o tormentoso "problema do mal".

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