Davi e a Casa de Saul (Parte 4/6)

Por Caramuru A. Francisco
III – DAVI E MEFIBOSETE

Quando se fala da história de Davi e de Mefibosete, costuma-se tão somente contar a bondade demonstrada pelo rei ao neto de Saul e filho de Jônatas, de que já tratamos no primeiro item deste estudo. No entanto, existe outro episódio a envolver não só ambas as personagens, como também o servo de Saul, Ziba, que é relatado quando da revolta de Absalão e que também será objeto de nosso estudo, que trata de como Davi se relacionou com a casa de Saul.

Quando Davi recebeu a notícia de que Absalão se proclamara rei em Hebrom e que tinha a seu lado o povo, o rei, prudentemente, resolveu sair de Jerusalém, fugindo, a fim de que, se pudesse, organizasse a resistência contra o usurpador. Na sua fuga, levou seus familiares, deixando apenas dez concubinas para guardar o palácio real (II Sm.15:14-16).

Mefibosete, que era como se fosse um dos filhos do rei, pediu a Ziba que lhe albardasse um jumento, mas Ziba, vendo nesta situação uma oportunidade para ter aquilo que almejara e não conseguira antes, ou seja, os bens que haviam sido de Saul e agora eram de Mefibosete, saiu de Jerusalém e foi ao encontro de Davi, deixando Mefibosete em Jerusalém (II Sm.19:26).

Ziba encontrou Davi quando este descia do monte das Oliveiras (II Sm.15:30; 16:1), após ter se entrevistado com Husai, depois de ter adorado o Senhor. Davi estava psicológica e fisicamente abalado, sabia que Absalão tinha muito melhores condições de reinar e, deste modo, corria risco de morte. Estava, além disso, extremamente cansado, quase que esgotado fisicamente, até porque já não era um jovem.

Ao encontrar-se com Ziba que, astutamente, vinha com um par de jumentos albardados e sobre eles duzentos pães, com cem cachos de passas, com frutas de verão e com um odre de vinho, perguntou o rei qual era a pretensão do servo de Mefibosete. Ziba, então, disse que todo aquele mantimento era para o rei e seus homens.

Em seguida, Davi perguntou sobre o paradeiro de Mefibosete e Ziba, então, maldosamente, disse que Mefibosete ficara animado com a rebelião, achando que, com ela, ele se tornaria rei de Israel, pois haveria a restauração da casa de Saul. Davi, sem pensar duas vezes, sem se lembrar do comportamento e conduta exemplares que Mefibosete apresentava na corte, pois, afinal de contas, comia de contínuo da mesa do rei, era pessoa que desfrutava da intimidade de Davi e de sua família, irado, abalado pelos presentes trazidos por Ziba, sem que desse qualquer chance a Mefibosete, tomou tudo o que era de Mefibosete e o deu a Ziba que, radiante, inclinou-se diante de Davi (II Sm.16:3,4).

Davi fugiu, Husai conseguiu transtornar o conselho de Aitofel, que era o homem mais sábio daquele tempo e Davi acabou por vencer Absalão, recuperando o trono. Ao voltar para Jerusalém, Mefibosete foi encontrar-se com Davi, barbudo e mal-cheiroso, visto que não havia feito a barba nem lavado seus vestidos desde que Davi havia fugido de Jerusalém.

Davi, então, tardiamente, pergunta a Mefibosete porque ele não o havia acompanhado e Mefibosete contou-lhe a verdade, de como fora enganado por Ziba. Davi, então, caiu em si, pois viu que fora extremamente injusto com Mefibosete, que havia intercedido a Deus, a favor do rei durante todo o tempo da rebelião. Tentou, então, remediar a situação, dizendo que Ziba e Mefibosete repartissem o patrimônio meio a meio, ao que Mefibosete disse que tudo poderia ficar com Ziba, pois o que ele mais queria era o bem-estar do rei, a resposta às suas orações, o que ele havia alcançado (II Sm.19:24-30).

Neste episódio, temos muitas e importantes lições espirituais. A primeira delas é que não podemos decidir precipitadamente, máxime quando nos encontramos abalados psicológica, física e espiritualmente. O adversário de nossas almas sempre está à espreita, buscando a ocasião quando “descemos do cume do monte” para nos atacar e nos fazer errar.

Deus, quando dialogou com Caim, disse que o “pecado jaz à porta” (Gn.4:7), ou seja, está, como diz o povo do interior brasileiro, “de tocaia”, pronto para atacar e dominar o que primeiro aparecer desavisadamente no seu caminho. Como disse o apóstolo Pedro, o adversário anda em derredor, buscando a quem possa tragar (I Pe.5:8).

Davi havia acabado de adorar a Deus, pedido ao Senhor que o livrasse daquela situação, mas, depois de ter se entrevistado com Husai e recebido a orientação divina para que viesse a ter nova oportunidade de voltar ao trono de Israel, desceu do cume do monte das Oliveiras, desatento, sem a devida concentração espiritual e se tornou alvo fácil de Ziba que, com os presentes, com os mantimentos trazidos, conseguiu seu intento de tomar tudo quanto pertencia a Mefibosete.

Este erro lamentável de Davi, um dos maiores de sua vida, visto que aceitou peita contra um inocente, agiu por impulso, pensando única e exclusivamente na satisfação de suas necessidades imediatas, tem como contraponto a conduta de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo que, mesmo faminto após quarenta dias e quarenta noites de jejum, não se deixou levar pela oferta diabólica de satisfação de suas necessidades mediante um indevido e inadmissível exercício de Sua divindade (Mt.4:2-4).

Tomemos muito cuidado, amados irmãos, pois o adversário continua a se utilizar das mesmas armas, pois tudo o que há no mundo se reduz a três fatores: concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida (I Jo.2:16).

Davi, faminto, psicologicamente abatido, deixou-se levar pelo presente de Ziba e cometeu uma grande injustiça, tomando tudo quanto pertencia a Mefibosete e o entregando a Ziba, sem que pudesse sequer verificar se o que Ziba estava a falar era verdade. Esqueceu-se de que Mefibosete era aleijado de ambos os pés e, assim, jamais teria condições de reinar sobre Israel. Esqueceu-de de que o povo todo estava a apoiar Absalão e que não havia a mínima condição de Mefibosete se tornar rei de Israel por ser o herdeiro presuntivo da casa de Saul, casa esta que havia sido retirada do trono pelo próprio Deus. Davi de nada disso se lembrou e, movido pela paixão, cometeu tamanha injustiça.

Ziba aqui, como podemos ver, representa o adversário de nossas armas, a astuta serpente, que nunca deve ser subestimada. Com suas ofertas atraentes que, quase sempre, servem para saciar nossas necessidades imediatas, consegue fazer com que percamos o mais importante, que é a vida eterna, a comunhão com Deus. Pensemos nisto toda vez que formos tentados. Assim como Tamar fez com Judá (Gn.38), corremos o risco de sob um pretexto de termos de apenas pagar um cabrito, perder tudo quanto temos de mais importante, o selo (patrimônio), o lenço ou cordão (a autoridade moral e espiritual) e o cajado (a dignidade). Não nos iludamos: o salário do pecado é a morte (Rm.6:23).

Não podemos deixar o cume do monte, ou seja, não podemos sair da presença do Senhor. Temos de manter com Deus uma íntima comunhão, estar diante d’Ele todos os dias de nossa vida, a fim de que não sejamos enganados pelo inimigo de nossas almas. É no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente que encontramos descanso (Sl.91:1). Nas mãos do Senhor, ninguém poderá nos arrebatar (Jo.10:28). Quantos têm fracassado por fazerem como Davi: descer do cume do monte, ou seja, sair da presença de Deus.

Enquanto Davi tentava voltar ao trono, Mefibosete, que foi obrigado a ficar em Jerusalém, não teve medo de Absalão. Deixou de barbear-se e não lavou seus vestidos, numa prática de quem pedia a Deus incessantemente por algo. Sua forma de agir, pública e notória, mostrava que estava a pedir algo a Deus, a se sacrificar diante do Senhor, demonstrando toda a sua tristeza e toda a sua angústia pela situação. Intercedia em favor de Davi, porque o amava e era grato a tudo quanto Davi lhe havia feito, como, aliás, fez questão de ressaltar no reencontro com o rei.

Mefibosete simboliza o salvo que está em comunhão com o Senhor e que se aflige pela obra do Senhor, pelo nome do Senhor. Evidentemente que, na tipificação, não é caso de o salvo se mortificar por causa do Senhor, que vive e reina para sempre, mas pode e deve fazê-lo pelos seus irmãos, aqueles que, como ele, pertencem ao corpo de Cristo (I Co.12:27). Devemos orar uns pelos outros (Tg.5:16) e, por vezes, em momentos de angústia e grande aflição, jejuarmos como reforço à oração intercessória, já que o Senhor não está fisicamente mais conosco (Mt.9:15; Mc.2:20; Lc.5:35), algo tanto mais necessário nos dias trabalhosos pelos quais vivemos. O salvo deve alegrar-se com quem se alegra, mas também chorar com os que choram (Rm.12:15). Mefibosete comia de contínuo na mesa do rei, mas, quando o rei teve de fugir, passou a se afligir por ele.

Mefibosete, desta feita, foi ao encontro do rei. Na vez anterior, Davi o chamou, pois não tinha condições de se apresentar ao rei. Agora, é Mefibosete que vai ao seu encontro em Jerusalém. Este fato mostra-nos, por primeiro, que Mefibosete não saiu de seu lugar, estava em Jerusalém. Os salvos estão assentados nas regiões celestiais onde já foram abençoados com todas as bênçãos espirituais (Ef.1:3; 2:6). Este é o lugar em que Deus nos pôs, do qual não podemos jamais sair.

Mefibosete foi ao encontro do rei porque estava em comunhão com ele, não havia pecado e, por isso, podia chegar com ousadia no santuário (Hb.10:19). Se estamos em comunhão com o Senhor, i.e., um verdadeiro coração, inteira certeza de fé, os corações purificados da má consciência e o corpo lavado com água limpas, podemos nos apresentar diante do Rei, porque o Senhor Jesus, nosso grande sacerdote sobre a casa de Deus, já nos abriu um novo e vivo caminho (Hb.10:20-22). Aleluia!

Mefibosete, ao se apresentar diante de Davi, como tinha a consciência limpa, contou a verdade, dizendo ter sido enganado por Ziba, pois, ao esperar que o jumento fosse albardado pelo seu servo, foi deixado, não podendo caminhar por ser coxo de ambos os pés. Esta circunstância lembra-nos que dependemos única e exclusivamente do Senhor e que não podemos confiar no homem, pois maldito é o homem que confia no homem (Jr.17:5). Que é confiar no homem? É confiar em alguma pessoa, como Mefibosete em Ziba? Não, é confiar no ser humano, em nós mesmos, em vez de confiar no Senhor. Como diz Jeremias, é “fazer da carne o seu braço e apartar seu coração do Senhor”.

Mefibosete, ao ser traído por Ziba, confiou plenamente em Deus e pôde ver o livramento do Senhor. Continuou em Jerusalém e, publicamente, demonstrando sua tristeza pela saída de Davi. Correu sério risco de morte, mas Deus não permitiu que Absalão o matasse e ele pôde sentir a mão do Senhor lhe protegendo, enquanto que Davi, sem que ele o soubesse, o havia privado de todos os seus bens. Vale a pena confiar em Deus!

Mefibosete corria risco de morte quando se encontrou com Davi, mas não mentiu, como fez Mical ou o próprio Davi em situações similares. Jamais devemos mentir, devemos sempre falar a verdade (Ef.4:25). O resultado disto foi que saiu da situação com vida e numa situação moral e espiritual bem melhor que a do próprio rei Davi.

Mefibosete, depois de ter contado a verdade, nada pediu. Deixou que o rei, a quem chamou de “um anjo de Deus”, tomasse a decisão que lhe aprouvesse (II Sm.19:27). Que expressão de amor de Mefibosete: chamar de “anjo de Deus” aquele que lhe havia privado de todo o seu patrimônio injustamente. Mefibosete mostrava ter o verdadeiro amor, o amor desinteressado, como também sua profunda gratidão por todos os benefícios que Davi lhe havia feito. Comer de contínuo na mesa do rei era para Mefibosete muito mais importante do que todos os bens que possuía. Temos procedido do mesmo modo: temos nos satisfeito apenas com as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo ou queremos os bens do mundo?

Mefibosete, ainda, disse ao rei que, na sua situação, não tinha direitos a reclamar ao rei, pois era alvo da sua misericórdia. Quem é beneficiado pela misericórdia não cria direitos, tem de saber que tudo que tem decorre de favores imerecidos. Como faltam crentes como Mefibosete nos dias atuais, em que muitos estão a “exigir seus direitos” de Deus, como se tivessem algum mérito. Somos salvos pela graça (Ef.2:8) e não podemos nos gloriar pela salvação, nem tampouco, como muitos paroleiros em nossos dias, “reclamar direitos” ou “requerer” diante de Deus. Tomemos cuidado!

Davi, envergonhado, procurou remediar a situação. Vendo que Mefibosete lhe fora sempre leal e que Ziba havia mentido, tentou fazer uma média, mandando que Ziba e Mefibosete repartissem o patrimônio (II Sm.19:29).

Mefibosete, então, dá outra grande lição ao rei. Disse que o rei não precisava tentar solucionar o caso. Ele estava feliz com o retorno de Davi ao trono, com a resposta às suas orações, isto lhe bastava. Podia Ziba ficar com os bens materiais, pois Mefibosete preferia o bem-estar do rei e a continuidade da intimidade, da comunhão entre ele e o rei (II Sm.19:30). Que lição para os nossos dias. Para Mefibosete, a graça do rei lhe bastava. Será que a graça de Jesus nos basta?

O texto sagrado não nos diz se a ordem do rei Davi foi cumprida, com a repartição do patrimônio entre Ziba e Mefibosete, ou se Mefibosete passou a viver única e exclusivamente da mesa do rei. O certo é que Mefibosete não recuperou todo o patrimônio que tinha antes, o que mostra quão enganosos são os que usam Mefibosete como símbolo de enriquecimento e da “bênção de restituição”. Fujamos destes falsificadores da Palavra de Deus!

IMAGEM:"Davi mostra a Saul que havia poupado sua vida" Gustave Doré (1832-1883).
Disponível em http://www.creationism.org/images/DoreBibleIllus/dore_pt.htm.

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