Davi e os Perigos da Vaidade 2/4

Por Caramuru A. Francisco
II – DAVI CEDE À TENTAÇÃO DA VAIDADE

Davi retoma a estabilidade de seu reino, sufocando exemplarmente a revolta dos filisteus. Não há mais quaisquer adversários externos ou internos que pudessem perturbar seu reino e, deste modo, poderia se dedicar com afinco à sua tarefa de deixar tudo pronto para que o seu sucessor viesse a construir o templo ao Senhor em Jerusalém.

Entretanto, se Davi não tinha mais adversários externos ou internos a enfrentar, tinha um inimigo que não havia desistido de lutar contra ele: o diabo. A Bíblia é clara ao dizer que Davi foi incitado pelo diabo para que numerasse o povo (I Cr.21:1). É verdade que o texto de II Sm.24:1 diz que “a ira do Senhor se tornou a acender contra Israel e incitou Davi”. Então, como ficamos: foi Deus ou o diabo quem incitou Davi a numerar o povo?

Não devemos nos esquecer que os textos de Samuel e de Crônicas foram escritos com grande diferença de anos. Samuel foi escrito provavelmente durante os reinados de Saul, Davi e Salomão pelos profetas Samuel, Natã e Gade, enquanto que os livros de Crônicas foram escritos muitos séculos depois, segundo a tradição judaica, por Esdras. Tal distância de tempo leva-nos a entender dois importantes fatores:
a) um texto praticamente contemporâneo tende a não ter a mesma profundidade e análise de um texto muito mais tardio, que não se deixa influenciar pelo momento dos fatos.
b) textos muito distantes temporalmente no Antigo Testamento são textos que se encontram em estágios diferentes da revelação divina a Israel – quanto mais tardio o texto, maior a revelação recebida, pois a revelação foi progressiva até a vinda do Messias, quando chegou à Sua plenitude (Hb.1:1).

Diante destas circunstâncias, vemos, claramente, que, em II Sm.24:1, não havia condições históricas, políticas e espirituais para que se dissesse que Davi havia sido incitado pelo diabo para fazer o que havia feito. Já em Crônicas, quando não havia mais tais fatores obstativos, bem como uma revelação maior, tem-se que tal declaração não causa o mesmo choque e rejeição que haveria na oportunidade do primeiro texto.

Foi, pois, mesmo o diabo quem incitou Davi para que numerasse o povo. Deus Se mostrou irado com Israel, não explicitando o texto o porquê de tal ira. Talvez, diante da rebelião de Seba, quando Israel questionou a aliança que havia feito com Davi e, assim, a própria escolha divina para que Davi reinasse sobre Israel, o que foi expressamente reconhecido neste pacto (II Sm.5:1-3), ou, mesmo, a traição cometida pela tribo de Judá na rebelião de Absalão, quando todo o povo pendeu para o usurpador, abandonando Davi, inclusive o povo que habitava em Jerusalém (II Sm.15:13; 16:15).

Como Davi disse no Salmo 36, o melhor lugar onde devemos estar é sob a sombra das asas do Senhor, no “esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente”, como diz o salmista anônimo que compôs o Salmo 91 (Sl.91:1). Quando o Senhor nos nega a Sua misericórdia, em razão da Sua justiça, então não temos como escapar, pois estaremos debaixo da ira de Deus (Jo.3:36).

O fato é que Deus havia Se desagradado de Israel com as atitudes de rebelião que havia tomado contra o Seu ungido e, como o pecado de rebelião é como o pecado de feitiçaria (I Sm.15:23), Deus retirou a Sua mão de sobre o povo e, como resultado disto, o diabo pôde tentar a Davi num capítulo em que Davi era difícil de ser atingido: na vaidade.

O diabo veio a Davi e começou a lhe mostrar a grandeza do seu reino, a magnificência de seu governo e, diante disto, incitou Davi a que efetuasse um recenseamento, para que soubesse quantos súditos ele tinha. A princípio, tratava-se de uma medida extremamente benigna não só para o rei, mas para todo o povo, pois, sabendo qual era a população de Israel, Davi poderia melhor administrar o país, inclusive para fins de arrecadação e do que hoje se denomina de “formulação de políticas públicas”, como, aliás, vemos ocorrer decenalmente no Brasil, quando são feitos os recenseamentos pelo IBGE.

No entanto, esta medida, aparentemente salutar, afrontava diretamente a lei de Moisés. Na lei, vemos somente duas oportunidades em que o povo foi contado, as duas vezes no deserto, ambas por ordem de Deus: a primeira, no primeiro dia do mês segundo, do segundo ano da saída do Egito (Nm.1:1); a segunda, trinta e oito anos depois (Nm.26:1-4; Dt.2:14).

Ambos os recenseamentos foram determinados expressamente por Deus e tinham objetivos atinentes ao relacionamento de Deus com o Seu povo: no primeiro recenseamento, descobriu-se quem estava pronto a ir à guerra de cada tribo (só eram contados os homens de vinte anos para cima, com exceção dos levitas) bem como se tornou possível a remissão dos primogênitos, que foram substituídos pelos levitas como “a porção do Senhor” no meio do povo (motivo por que foram contados, então, todos os homens levitas, independentemente da idade). No segundo, Deus mostrou como havia cumprido a Sua palavra a respeito da morte de toda a geração do êxodo, com exceção de Josué e de Calebe (Nm.26:63-65).

Como bem notou Russel Shedd, “…o censo regia-se por cláusulas especiais da lei (Ex.30:12-15; Nm.1:2-4, 47-49). Não podiam ser contados os levitas, as mulheres e pessoas menores de vinte anos e, quando o censo era comum, orientava-se comente pelo motivo de resgate, uma espécie de imposto per capitã (religioso), para o Senhor…” (BÍBLIA SHEDD, com. I Sm.24:1, p.474) (destaque original).

Ora, a decisão tomada por Davi não provinha de qualquer ordem da parte do Senhor. Davi tomava a iniciativa de numerar o povo sem que Deus o mandasse. Era resultado de uma incitação satânica que, como afirma Matthew Henry, resultou de uma tentação de vaidade, de uma manifestação de orgulho no coração de Davi. “…O que havia de pior na numeração do povo foi que Davi fez isto na soberba de seu coração, assim como o pecado de Ezequias foi mostrar seus tesouro para os embaixadores. [O recenseamento] era resultado de seu sentimento de grandeza própria em ter o commando de um povo tão numeroso, cujo crescimento, em vez de ser considerado como uma bênção de Deus, passou a ser por ele atribuído a seu próprio esforço. [O recenseamento] era uma demonstração de orgulhosa confiança em sua própria força. Publicando entre as nações o número de seu povo, ele [Davi] pensou que pareceria o mais formidável, e ninguém duvidaria disso, e se ele tivesse que enfrentar alguma outra guerra, ele sobreporia seus inimigos com a multidão de suas forças, em vez de confiar apenas em Deus…” (Comentários de toda a Bíblia, com. a II Sm.27. Disponível em: http://www.biblestudytools.com/Commentaries/MatthewHenryComplete/mhc-com.cgi?book=2sa&chapter=024 Acesso em 30 out. 2009) (tradução nossa de texto em inglês).

A determinação de numeração do povo envolvia, pois, uma manifestação de soberba por parte de Davi, que tanto se notabilizara pela sua humildade até então. Deus retirara sua mão e Davi não soube resistir à incitação satânica e se achou poderoso e forte. Talvez sensibilizado pelo fato de não mais poder ir à guerra, tentou “compensar” a “reforma militar” com dados estatísticos que denunciassem aos inimigos a força de seu exército e o número de seu povo, a fim de “dissuadir” quaisquer inimigos. Davi esquecera-se completamente de que não dependia de cavalos, nem de cavaleiros, mas única e exclusivamente do Senhor dos Exércitos.

Quantos não procedem da mesma maneira na atualidade? Quantos que não confiam na força do seu braço, no número dos membros de sua igreja local, na sua fama, na consideração e respeito que desperta nos círculos e ambientes que frequenta? É triste quando o homem se deixa levar pela vaidade, pelo orgulho, pela soberba, pois a Bíblia é taxativa ao dizer que este comportamento não tem a aprovação divina, sendo certo que Deus humilha aqueles que se exaltam (Ez.21:26; Lc.18:14) .

Joabe, ao receber a ordem do rei para recensear o povo, ainda tentou argumentar com Davi. Apesar de toda a sua conduta malévola ao longo dos anos, Joabe sempre procurou resguardar a imagem do rei Davi. Era pessoa leal ao rei e que, sempre que podia, procurava impedir que o rei tomasse alguma deliberação que arranhasse a sua autoridade. Joabe fez ver ao rei que a numeração do povo era desnecessária e afrontaria a Deus, mas, como a ira do Senhor estava sobre o povo, como Davi sucumbira à incitação maligna, não teve força para impedir o recenseamento (II Sm.24:3,4; I Cr.21:2-4).

Diante desta circunstância, não pôde Joabe fazer outra coisa senão numerar o povo, tendo, então, andado por todo o reino a fim de contar o povo, tendo chegado à soma de um milhão e cem mil homens de Israel e quatrocentos e setenta mil homens de Judá (I Cr.21:5) ou, na numeração que consta em II Sm.24:9, oitocentos mil homens de Israel e quinhentos mil homens de Judá, não tendo, porém, sido contados por Joabe nem os levitas nem os benjaminitas, por decisão do próprio Joabe.O recenseamento durou nove meses e vinte dias (II Sm.24:8).

Notemos aqui que, embora Deus tivesse permitido que se fizesse o recenseamento, não se realizou ele como queria Davi. Joabe não contou os levitas nem os benjaminitas, o que parece que não era a ordem de Davi, que queria que todos fossem contados. Joabe assim procedeu diante das características dos recenseamentos anteriores, procurando violar o menos possível a lei do Senhor. Também não contou a Benjamim pois sabia que eventual recenseamento dessa tribo poderia trazer problemas políticos a Davi, diante da recente sedição de Seba e de todo o ressentimento existente entre a casa de Saul e a casa de Davi.

A diferença de números nos dois relatos do recenseamento também não pode ser objeto de estranheza pelo leitor da Bíblia. Aqui, mais uma vez, temos a questão da diferença de tempo entre os dois textos, sendo certo que o texto de II Sm.24, bem mais recente e sob o impacto dos acontecimentos, efetivamente não fez um relato minudente de um episódio que trouxe a ira de Deus sobre o povo.

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