Opinião: Sobre Saul e a Feiticeira
Continuando com o nosso
intuito de publicar o comentário de alguns daqueles que deixaram sua impressão
a respeito de artigos publicados nesse blog, trazemos a baila o comentário de
um “Anônimo” que nos escreveu para trazer a lume sua opinião sobre uma das
passagens mais instigantes do Antigo Testamento ‘Saul e a feiticeira de Endor’
(I Sm 28.3-25). Apesar de não termos o nome do autor da réplica, transmitimos o
seu comentário na integra por entendermos que sua leitura, junto com o artigo
que originou o comentário, será de grande ajuda para o estudante das
Escrituras. Eis o comentário:
Costuma-se divulgar a
ideia de que quem se manifestou no caso de 1Sm 28.3-25 foi um demônio (como
assecla do Satanás do Novo Testamento). Essa interpretação tem suas raízes em
Agostinho de Hipona, o qual é citado na Suma Teológica de Tomás de Aquino.
Entretanto, esse raciocínio retroprojeta para o texto uma percepção que não faz
parte do mundo em que o texto foi cunhado. Todos os mortos iam para o Sheol (o
mundo inferior, que não tem nada a ver com o inferno que os cristãos imaginam
hoje) e o trabalho dos ovot ("os evocadores dos ancestrais
falecidos") era justamente chamá-los a fim que respondessem à questão
trazida pelo consulente. A forma em que o texto se encontra hoje pretende
desmoralizar Saul e exaltar Davi, além de interditar a prática da busca pelos
que contatavam os mortos. No entanto, uma leitura atenta vai mostrar que o
narrador não tenta desmentir que o caso aconteceu. Nem mesmo adianta apelar
para uma interpretação tendenciosa do verbo hebraico yada'
("penetrar"), por exemplo, a versão "entendendo Saul que era
Samuel", como a dizer que tudo foi resultado de um delírio do rei. A
narrativa é clara em afirmar que "a mulher viu Samuel" e não "a
mulher disse a Saul que estava vendo Samuel". Também não é valido
argumento segundo o qual a palavra do Samuel defunto não foi cumprida na
íntegra. As objeções que se costuma fazer quanto a isso são:
1. Saul não foi morto
pelos filisteus. Suicidou-se.
Réplica: O texto fala
em "Saul ser entregue nas mãos dos filisteus". Isso não
necessariamente significa ser morto por eles diretamente, mas perecer por causa
do cerco filisteu. Saul suicidou-se justamente porque o cerco
dos filisteus fechara-se sobre ele, em outras palavras, "ele havia
sido entregue nas mãos deles". Para não morrer pela violência dos
inimigos, Saul preferiu suicidar-se, o que completou a tragédia de sua vida. Se
bem que a tragédia maior talvez tenha sido o abandono por parte de todos.
2. O Samuel defunto diz
que Saul e os filhos dele estariam com ele (mortos) "amanhã", isto é,
no dia seguinte ao episódio com a mulher de En-Dor. Só que eles morreram alguns
dias depois e nem foram todos os filhos do rei.
Réplica:
"Amanhã" é uma metáfora, uma expressão idiomática generalizante, que
se refere ao futuro, provavelmente a um futuro mais imediato, só que não
forçosamente no "dia seguinte". Um outro exemplo na Bíblia do uso
desse advérbio com sentido metafórico é Lucas 13.32: "Respondeu-lhes
Jesus: Ide e dizei a essa raposa: Eis que vou expulsando demônios e fazendo
curas, hoje e amanhã, e no terceiro dia serei consumado." Jesus não fez
curas e expeliu demônios somente naquele dia e no dia seguinte. Sua fala
provavelmente é um dito enigmático pelo qual ele descreve a sua atividade até o
dia da morte, que também é apresentado de modo metafórico.
É possível que, no
Antigo Israel, as pessoas acreditassem na eficácia dessas práticas? A resposta
é sim. 1Sm 28.3-25 pode ter surgido num círculo de pessoas que acreditava
nisso. E muito provavelmente esse canal de comunicação pode ter sido
considerado legítimo. A proibição só aconteceu bem depois, provavelmente com a
"reforma" (totalitária) de Josias no século VI A.E.C. Os códigos
legais que proíbem a prática, como o Levítico e o Deuteronômio, são bem
posteriores à época de Saul.
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